Depois do infeliz acidente aéreo em Caratinga (Minas Gerais), que se consumou no dia 5 de novembro e ceifou as vidas da tripulação e passageiros, dentre eles a cantora Marília Mendonça, minha caixa de mensagens começou a pipocar perguntas como “Ei, você que é piloto, o que acha que aconteceu que derrubou o avião?”
Essa pergunta é um pouco incômoda. Primeiro porque é impossível respondê-la. É a mesma coisa que você ver alguém simplesmente cair morto do outro lado da rua e perguntar para seu amigo médico ao lado “do que aquela pessoa morreu?”.
“Ah, mas estão falando que testemunhas viram bater no fio de alta tensão”. Mesmo que isso seja verdade, ainda fica muita coisa pra esclarecer: o que levou a aeronave a bater nos fios? Problemas mecânicos? Erro do piloto? Algum passageiro surtou? Etc etc etc.
E mesmo respondendo essas perguntas, novas perguntas surgirão. Esse é o problema de tentar especular conclusões de acidentes aéreos em mesa bar: você acaba gerando boatos que se espalham e podem prejudicar pessoas. E até a aviação como um todo, já que vi até celebridades e influencers dizendo para as pessoas evitarem voar, principalmente aviões de pequeno porte, porque não são seguros. Ora, são estatisticamente muito mais seguros do que se locomover por carro e ônibus, por exemplo. Ainda mais no Brasil. Portanto todos esses boatos e especulações são irresponsáveis.
Investigar um acidente aéreo é algo demorado, pois a complexidade está em encontrar os fatores que levaram ao acidente.
Vamos entender: a organização responsável por investigar acidentes aéreos no Brasil é o CENIPA (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) que é uma unidade da Força Aérea Brasileira. Nas investigações, são entrevistadas as testemunhas; destroços levados para o laboratório; documentação dos tripulantes (e até documentações avaliativas do treinamento do tripulante) checados; a empresa ou operador são também investigados; meteorologia e fenômenos naturais; geografia e obstáculos presentes, enfim, tudo pode ser um fator. E o relatório final da investigação do CENIPA indicará todos os fatores que levaram a aeronave a se acidentar e não a causa.
Eu acho isso muito interessante, pois apesar de parecer inespecífico, não existe uma causa para um acidente aéreo, e sim uma série de fatores que causam o mesmo. Um piloto despreparado, por exemplo, não irá sozinho derrubar um avião (vamos excluir casos deliberados como o da German Wings), é necessário que falhas sistêmicas se alinhem para que o acidente se concretize. E isso fica mais interessante ainda, pois pode ser aplicado a muitos processos onde é preciso conter falhas: é o modelo do swiss cheese (queijo suíço).
A aviação é regida por uma série de padrões e regras que visam tornar as operações seguras. Para que o acidente aconteça, todas as camadas que regem uma operação devem formar um túnel sequencial de falhas, ou seja, as fatias do queijo têm os buracos alinhados de forma que a fatia da frente não impedirá o avanço do erro para a próxima fatia de forma sistemática até chegar ao acidente. Ou seja, o acidente começa já nas camadas latentes, como a figura abaixo mostra, aplicando o modelo do Swiss Cheese a um acidente real:
Apontando as causas do acidente em seu relatório final, o CENIPA visa, como já disse, não encontrar a causa - e muito menos os culpados - e sim os fatores que levaram ao acidente, identificando as camadas desse queijo suíço. O relatório é publicado para acesso geral e com o objetivo de prevenir novos acidentes, ou seja, cada camada de segurança, cada regra e padrão que temos hoje na aviação, foram criados às custas de vidas e ou propriedades. Cada falha se tornou um ensinamento e essa é a história da aviação desde seu primórdios. Várias pessoas se aventuraram no desconhecido e no incerto para que hoje tenhamos um dos meios de transporte mais seguros do planeta.
Por isso não é interessante especular ou espalhar boatos antes de uma investigação, pois essas fofocas, sim, visam culpar e julgar. E podem prejudicar pessoas ou a memória delas e, também, dependendo do caso, arruinar empresas e negócios. Se houve negligência ou violação, isso será levantado nas investigações e deve ser julgado posteriormente e de forma justa.
Portanto, se me perguntam, hoje, o que foi que aconteceu que fez aquele avião cair, a resposta é só uma: não tenho - ainda - a mínima ideia.
Ouça o episódio do podcast Escriba Cafe sobre a História da Aviação
Até então, este é o post mais sensato que já vi sobre desastre aéreo
mesmo com o pesar do acidente e das vítimas e suas famílias, como fã do EC e de aviação, me sinto privilegiado com este tipo de post.
Como dito, o CENIPA tem um papel fundamental na investigação dos acidentes aéreos no país, mas além disso, tem o princípio de fazer com que nenhum acidente seja em vão, buscando corrigir para toda aviação, os “furos das fatias do queijo suíço”.
Destaca-se a filosofia de entender o porque, ao invés do quem… isso é um pilar da segurança de voo.
Agpra, imaginem a mesma filosofia em acidentes rodoviários? Teríamos poupado ainda mais vidas até hoje.
Eu me reprovo, porque estava nessa posição de querer a todo custo uma resposta rápida e definitiva, que desse sossego a minhas indagações e você foi ao ponto: mesmo que eu tivesse uma resposta, ainda assim, ela não seria satisfatória o bastante. Há muito mais que uma resposta a considerar por trás desse acontecimento tão trágico e triste. Obrigado pela reflexão.
Concordo com cada linha escrita meu Amigo. Ontem me perguntaram assim: " Como você é da mesma categoria, o que aconteceu com o avião? Kkk" . Exatamente, o kkk está dentro da frase. As pessoas pensam que nós temos uma ligação total com todos os Pilotos e aeronaves do mundo, em tempo real, tipo aquele conector em Avatar! Muito triste isso viu! Parabéns pelo Trabalho!
Muito oportunas e valiosas essas considerações.