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Foto do escritorChristian Gurtner

Diabolus


A história e a mitologia por trás daquele que é o símbolo do mal para os cristãos.

Esse episódio faz parte dos fantásticos podcasts mais antigos do Escriba Cafe que, por questões de direitos autorais, não estão disponíveis para download nem pelo feed, Spotify, etc, (nem mesmo pelo player fixo no site) sendo possível ouví-los somente pelo player no respectivo post.

TRANSCRIÇÃO DO EPISÓDIO

(As transcrições dos episódios são publicadas diretamente do roteiro, sem revisão, podendo haver ainda erros ortográficos/gramaticais e, assim, pedimos que marquem os erros e deixem uma nota para que possamos corrigí-los)


Ler a transcrição completa do episódio


O homem sempre buscou respostas para sua existência. Mas suas perguntas sempre permaneciam na escuridão.

Sem conseguir lidar com sua própria consciência, com os fenômenos da natureza e a inevitabilidade da morte, precisou procurar respostas no desconhecido mundo invisível. Um mundo onde deuses e entidades surgiam como a cura para todas as dúvidas que consumiam o seu ser.

O homem precisava ser amparado. Colocou sob responsabilidade dos deuses tudo aquilo que ele achava impossível fazer sozinho.

E assim os deuses ganharam força. Vários surgiram, vários desapareceram e, os que ainda sobrevivem, são possuidores da fervorosa fidelidade e servidão daqueles que creem que o bem e o mal estão lutando por suas almas. E, para personificar essa guerra, criaram seus generais: criaram Deus e criaram o diabo.

Os deuses da antiguidade

Nas grandes religiões da antiguidade, não havia a nossa conhecida dualidade do bem o do mal. Eram vários deuses, cada um com sua função. Na mitologia grega, por exemplo, havia, dentre outros, o deus dos oceanos, o deus do amor e o deus da guerra. O mais próximo que poderíamos chegar de um deus do mal, nessa mitologia, é Hades, o senhor do mundo inferior, conhecido como o deus dos mortos, cujo qual era odiado pelos homens a ponto de não possuir nem um templo para sua adoração. Mas, ainda assim, ele não era a representação do mal.

Na mitologia nórdica, havia o Loki, que apesar de não ser um deus propriamente dito, vivia com os outros deuses, e era considerado mal e trapaceiro, sempre causando problemas. Contudo, Loki era uma figura complexa demais para podermos compará-lo um com um deus do mal.

Nas mitologias como a grega, os deuses tinham uma relação mais próxima com os seus adoradores e apresentavam comportamentos e sentimentos totalmente humanos, como o amor e o ódio, a generosidade e a inveja, a alegria e a tristeza.

Mas podemos facilmente encontrar monstros, criaturas e entidades que devastavam reinos, matavam e devoravam humanos e espalhavam o caos. Essas criaturas, muitas vezes, seguiam ordens ou eram criadas pelos próprios deuses.

Assim, o mesmo deus que protegia uma pessoa ou uma cidade, podia, posteriormente, ser o responsável por sua destruição.

Em diversas crenças antigas, era muito comum os humanos fazerem sacrifícios ou oferendas para poderem acalmar os deuses. Isso deixa clara a dualidade das divindades, mostrando que os deuses podiam fazer com que as plantações de um ano prosperassem e, se algum dia ficassem insatisfeitos, podiam fazer com que tempestades ou secas destruíssem as terras cultivadas. Simples assim, sem motivo algum.

Em algumas civilizações da antiguidade, como a Mesopotâmia, já se responsabilizavam seres maléficos por algumas catástrofes naturais e doenças, mas a existência de um ser supremo do mal, em constante guerra com um ser supremo do bem, só surgiu, de forma mais clara, na idade média.

A idade média

Na idade média, o domínio da igreja católica sobre a política e a cultura ocidental foi o principal fator que resultou na popularização, no ocidente, de uma personificação do mal.

O cristianismo incorporou muitas características de diversas crenças antigas, assim como todas as religiões que existem ou existiram. Contudo, a ideia de seres poderosos que podiam ser maléficos foi usada para criar um único ser que, comandando suas hostes, representava todo o mal.

Na mitologia cristã, Lúcifer era o mais belo e forte de todos os querubins. Ele revoltou-se contra deus e foi expulso do reino dos céus, junto com todos os seus anjos revoltosos.

Desde então, uma guerra entre o bem e o mal é travada. Lúcifer, que também é chamado de Diabo, Satanás, Capeta e diversos outros nomes, tenta, junto com suas hostes, corromper o homem.

O diabo é o responsável por tudo que é considerado mal no mundo, mas a falta de dados bíblicos sobre esse personagem da mitologia cristã acaba por criar diversas teorias diferentes, como a de que Lúcifer e Satanás são dois seres diferentes.

Mas, de qualquer forma, fora criado o ambiente perfeito para amedrontar as pessoas: se um homem é mal — e não segue a Igreja — quando morrer terá sua alma enviada para o Inferno, onde sofrerá por toda a eternidade. Já os que seguem a igreja e são bons, poderão ir para o Paraíso.

Esse dualismo, vivido mais na prática do que nos dogmas, foi determinante para o crescimento do poder da Igreja Católica, vista como o único caminho para o paraíso.

Imagens do diabo começaram a surgir, mas não de acordo com a lenda, e sim pela perspectiva católica. Ele passa a ser retratado como um ser horrível, animalesco, que causa medo e repulsa em quem o olha.

Com essa radical divisão entre o bem o mal, não podia haver meio termo para a Igreja. Ou você era do bem, seguidor e devoto da religião, ou simplesmente era um seguidor de satanás.

Começa, então, a caçada aos seguidores do diabo. Qualquer mínimo questionamento ou comportamento contrário aos dogmas da Igreja, poderia levar qualquer pessoa para a fogueira, acusada de heresia. Era o homem matando em nome do fruto de sua própria imaginação.

Codex Gigas

Com toda essa sombra espiritual rondando a idade média, surge um livro que entrou para o hall de mistérios medievais: o Codex Gigas. Ele é o maior manuscrito medieval existente. É também conhecido como a Bíblia do Diabo.

Foi concluído, provavelmente, no século XIII e possui quase um metro de altura, 50 cm de largura e 22cm de espessura, pesando aproximadamente 75kg. Suas capas são feitas de madeira e couro, com ornamentos de metal. Ele possui 310 folhas de velino, mas algumas páginas foram arrancadas. Ninguém sabe quem o fez nem o porquê.

O apelido Bíblia do Diabo, se deve a uma ilustração do mesmo que existe em uma das páginas. Isto, somando-se aos inúmeros mistérios que cercam o livro, fez surgir a lenda sobre a criação do Codex.

Dizem que um monge beneditino quebrou os votos monásticos e foi condenado a ser emparedado. Para se salvar, prometeu aos outros monges que escreveria em uma só noite um enorme livro que glorificaria o mosteiro e que conteria todo o conhecimento humano. Quando percebeu que não iria conseguir realizar a sua tarefa, ele rezou para o diabo para que este lhe ajudasse. E foi o que aconteceu: Satanás terminou o livro para o monge. A misteriosa imagem do diabo no livro seria um agradecimento ao ser das trevas ou até mesmo uma assinatura do coautor.

Lendas a parte, há historiadores que defendem que o livro levou mais de 20 anos para ser concluído. Em seu conteúdo há a versão Vulgata Latina da Bíblia, a enciclopédia de Isidoro de Sevilha, a Crônica dos Bohemios, tratados sobre medicina e vários outros.

As imagens e descrições do inferno que mais se popularizaram também foram uma criação tardia. A visão de inferno, que temos hoje em nosso imaginário, existe, em boa parte, graças a Dante Alighiere e sua famosa obra, A Divina Comédia, que narra sua ida ao inferno, ao purgatório e ao paraíso.

Devido a influência católica no mundo ocidental, quando se fala em diabo ou Lúcifer, imediatamente somos remetidos à algo maligno, horrível. Mas devemos entender que isso é uma questão de ponto de vista, de acordo com o credo.

Lúcifer e outras lendas

O nome Lúcifer significa “Portador da Luz” — Muitas vezes ele também é chamado de “Estrela da Manhã”. Boa parte dos estudiosos da bíblia cristã afirma que a aplicação do nome Lúcifer ao Diabo é um erro de tradução ou, simplesmente, má interpretação do texto da bíblia.

O fato é que, por causa dos antigos dogmas da Igreja Católica, criamos hoje relações erradas entre símbolos e personagens. Pentagramas, bodes, demônios… Acabamos mesclando tudo isso num só personagem: o Diabo.

Até hoje, várias seitas e crenças pagãs sobrevivem, são criadas ou, até mesmo, reformuladas. Todos esses credos pagãos possuem símbolos e divindades que, por não serem cristãos nem de nenhuma outra grande religião que conhecemos, acabam por serem confundidos com algo demoníaco. É a velha lei: Se não é do bem, é do mal! Mas o bem se resume unicamente no que a pessoa acredita, portanto, surge aí, o preconceito e a intolerância.

Como exemplo disso podemos citar os satanistas.

O satanismo

O satanismo, principalmente por causa do nome, é visto hoje pela maioria das pessoas como uma seita que segue Satã, o príncipe das trevas e do mal. E pressupõe-se que essas pessoas vivem para fazer o mal, para sacrificar humanos e animais em terríveis rituais e fazerem outras perversidades.

Sempre que adolescentes ou outro grupo de insanos pratica algum crime, como o assassinato, invocando divindades e tudo o mais, o ato é rapidamente tachado de ritual satânico.

O satanismo realmente existe. Mas esse termo é aplicado a diversas ramificações de crenças e seitas. Existem aqueles que cultuam, de fato, uma divindade, mas nem sempre o Satã ao qual se refere a Igreja. Contudo, o satanismo que mais possui adeptos é a vertente filosófica, que se resume na crença de que cada pessoa é o seu próprio sacerdote e o seu próprio deus. Veem Satã não como um ser ou um deus, e sim como uma força da natureza. Pregam a exaltação da vida, e veem os animais e as crianças como a mais pura manifestação dessa força vital. Os satanistas cultuam os prazeres mundanos, repudiando a abstinência cujo propósito seja a recompensa após a morte. Ou seja, é uma religião onde não se adora deuses, anjos ou demônios, e sim o mundo e o homem.

Esse tipo de filosofia já existe há muitos séculos e vários grupos foram perseguidos e pessoas queimadas por causa disso.

Mas é claro que hoje também existem grupos que, curiosamente, veneram o diabo mesmo. Talvez sem nem mesmo saber que esse ser foi uma criação da Igreja a qual eles são contrários. O preconceito parte sempre de ambos os lados.

É preciso compreender que não há como uma crença ser demoníaca ou seguidora do senhor do inferno se esses conceitos nem sequer existem nessas crenças. Portanto, se alguma religião ou crença são diabólicos ou não, isso fica a cargo das crenças e dogmas de quem está julgando.

Os demônios

Existem inúmeros símbolos e personagens míticos que são considerados, de forma errada, como imagens ou representações do diabo cristão. Mas esses símbolos e personagens em pouco ou nada se relacionam com a mitologia cristã. Esse é o caso do pentagrama. Esse conhecido símbolo é usado há milhares de anos por diversas crenças com diversos significados, como a perfeição, os 5 elementos da natureza e, até mesmo, o satanismo, caso o pentagrama esteja apontando para baixo, formando algo como um bode.

Existem, também, as entidades que povoaram a imaginação de diversas crenças: os demônios. Embora muitas pessoas liguem demônio unicamente ao Satanás, como se fosse apenas um ser, os demônios são vários. É uma espécie de criatura que, dependendo da crença, pode ser má ou nem tanto.

Na antiguidade, em civilizações como o Egito e a Mesopotâmia, acreditava-se na existência de demônios que estavam sempre à espreita para fazer vítimas. Eles eram responsabilizados por doenças, mortes e azar. Na Grécia Antiga, os demônios eram vistos como divindades inferiores, mas que não necessariamente eram maus.

No cristianismo, os demônios são ferramentas de Lúcifer, anjos que caíram junto com ele ou criaturas infernais cujo único propósito é fazer o mal. Boa parte desses demônios possuem nomes e são velhos conhecidos dos cristãos, como Belzebu, Azazel e Pazuzu.

Existe até mesmo uma linha de pesquisa chamada Demonologia, que cataloga e estuda os demônios.

Essas criaturas do mal, além de possessões, são também responsabilizadas por crimes, drogas, tristeza, depressão, falta de dinheiro e qualquer outra coisa que o crente possa achar que essa é a única explicação.

Nos dias de hoje, com influências de várias religiões atuais e antigas, construídas sobre os mesmos primitivos pilares, e misturando-se os mitos, é comum que um mesmo demônio, deus, ou entidade sobrenatural sejam vistos de formas completamente diferentes, até mesmo por pessoas inseridas na mesma cultura. A modernidade trouxe novas perspectivas espirituais, principalmente quando se trata do Diabo.

O ocultismo e os dias de hoje

Foi no século XIX que o ressurgimento e popularização de uma antiga pseudociência, fez a imaginação de muitos transbordar: entrava na moda o Ocultismo.

O ocultismo, também conhecido como ciência oculta, existe, na verdade, há muito mais tempo, desde a antiguidade até a idade média com a alquimia e a cabala judaica. Esses tipos de ocultistas foram perseguidos e mortos durante a inquisição.

Mas, no século XIX o ocultismo ressurgiu e ganhou fama. É um tipo de pseudociência que estuda o que pode ser chamado de sobrenatural, buscando atingir o conhecimento primordial, o qual se acredita ser a origem de todas as religiões e filosofias.

Com a popularidade da ciência oculta, muitas pessoas passaram, até mesmo, a se entreter com isso. Sessões espíritas após os jantares festivos eram comuns entre os mais ricos, como uma diversão para os convidados.

Misturando o ocultismo com os dogmas religiosos, o esoterismo e até a falta de conhecimento sobre esses assuntos, chegamos nos dias de hoje com inúmeras lendas urbanas. Uma delas ganhou muita popularidade: os pactos com o diabo.

Muitas pessoas ricas ou famosas começaram a ser acusadas, através de boatos, que haviam trocado suas almas por dinheiro, fama ou o que quer que fosse. O diabo passou a ser visto não mais como um monstro que quer acabar com a humanidade, e sim como um elegante e sedutor negociante à la Wall Street. Um gênio da lâmpada que sempre pedia algo em troca dos desejos.

Filmes, livros e a cultura pop começaram a criar uma imagem diferente do príncipe das trevas. Antes ele era um monstro repugnante. Agora, pode ser um belo homem ou uma linda e sensual mulher, vestindo roupas caras, curtindo a vida como um bon vivant e oferecendo o mesmo para quem quisesse dar sua alma em troca.

Ou seja…

Vivemos hoje num grande mix de religiões, crenças e misticismos em geral. Por mais cristã que uma pessoa seja, por exemplo, ela pode acabar, mesmo sem perceber, praticando algo pagão.

Simpatias e superstições poderiam levar qualquer um para a fogueira na idade média. Hoje em dia, talvez, até alguns padres evitam passar por debaixo de escadas ou cruzar o caminho com gatos pretos.

Estamos cercados culturalmente por essa mistura. Para alguém que não é um devoto muito praticante, as mitologias antigas e modernas se confundem no imaginário, criando diferentes formas para os deuses, os demônios, os anjos, os diabos, os profetas, enfim, criando nossa visão de mundo, físico e espiritual.

Essa é a bagunça de viver num mundo onde a razão ganhou espaço, deixando de ser ameaçada pelas religiões, porém influenciada.

Se o diabo existe ou não, se os demônios estão nos corrompendo ou não e se há uma guerra espiritual acontecendo há mais de dois mil anos, cabe apenas a você acreditar ou não.

Mas uma certeza eu lhes dou: existem demônios que podem nos destruir, sim: nossos demônios interiores. Portanto, procure focar suas forças para combater esses seres maléficos primeiro, depois preocupe-se, se quiser, com o inferno.

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1 Comment


Jéssica Fratton Barbosa
Jéssica Fratton Barbosa
Mar 03, 2022

Adorei sua reflexão sobre os demônios internos, quase ao final. Uma perspectiva interessante em tempos de pandemia.

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